"O nosso compromisso evangélico com a justiça é parte fundamental da evangelização".
"Anos atrás eu tive um enfarte e sempre que faço radiografia do tórax aparece o povo querido no coração", revela emocionado dom Angélico Sândalo Bernardino, em entrevista à revista Missões, no seu novo endereço em São Paulo. O telefone não para de tocar. "Tenho sido muito solicitado para encontros, palestras, conferências e retiros espirituais", explica o bispo emérito de Blumenau, SC, diocese que serviu nos últimos nove anos. "Angélico" no trato com as pessoas e firme em suas convicções, tira lições profundas do cotidiano. Na parede do escritório, que serve também como capela e biblioteca, fotos com dom Hélder Câmara. Sua mesa de trabalho exibe uma foto de Huyra, índia Guajás que acaba de amamentar o filho Tamataí e agora aleita um filhote de porco do mato. Noutra foto, uma mãe indiana amamenta o bebê e, ao mesmo tempo, um macaquinho. Sobre a foto lê-se: "O Verbo se fez carne...", um ato de fé que parece explicar seu lema episcopal: "Deus é amor". Na legenda: "Só quem é pobre procede com tanta generosidade...". Dom Angélico nasceu em Saltinho, em 1933, e estudou em São Carlos e Sorocaba, SP. Cursou Filosofia na Faculdade Assunção, Ipiranga, SP e Teologia em Viamão, RS. Foi ordenado padre em 12 de julho de 1959, celebrando este ano seu jubileu sacerdotal. Poeta e jornalista, trabalhou em diversos meios de comunicação e pastorais. Bispo desde 1975, atuou na arquidiocese de São Paulo e na diocese de São Miguel Paulista. Hoje é membro da subcomissão dos bispos eméritos da CNBB.
Dom Angélico, temos no Brasil atualmente 144 bispos eméritos, dentre os quais quatro cardeais. Como são acompanhados esses bispos e qual é a sua missão?
O bispo emérito é uma bênção para a Igreja. Quando fazemos 75 anos apresentamos o pedido de renúncia e temos a alegria de receber o nosso sucessor na diocese. A medida é altamente saudável, porque pessoas mais jovens assumem o cargo. Aliás, essa medida deveria atingir a todos na Igreja (padres, patriarcas e cardeais). O papa é meu pai eu o acho intocável, não quero nem fazer consideração a este respeito. A razão é que, com o passar dos anos, as forças físicas e psicológicas decrescem e isso vale para todos os filhos de Deus. O cardeal continua com um cargo de alta responsabilidade, a eleição do papa, por exemplo. Ser emérito não significa estar aposentado. Nós podemos e devemos continuar a rezar intensamente pela diocese. Como discípulos de Jesus Cristo, somos missionários até quando ressuscitarmos para vida eterna.
Tem algum documento ou orientações sobre o bispo emérito na Igreja? Há um estudo da Congregação para os bispos, sob a responsabilidade do cardeal Giovanni Batistta Ré, muito importante. Ele apresenta alguns testemunhos de bispos eméritos, mas, na minha opinião, nós caminhamos muito no aspecto jurídico e pouco ainda no sagrado e na comunhão. Por exemplo, este estudo ressalta que o bispo emérito continua a pertencer ao colégio episcopal e pode ser convocado para um Concílio Ecumênico, pode também ser eleito para o Sínodo Episcopal, com voto deliberativo, mas pelo fato de ser emérito, ele deixa de pertencer à Conferência Episcopal. Eu acho esta medida discriminatória, sobretudo, quando o próprio papa João Paulo II, em 1999, escreveu uma carta memorável sobre o respeito que se deve dar aos anciãos. Dom Antônio Mucciolo, arcebispo emérito de Botucatu, SP, apresentou ao cardeal Ré, a sugestão de organizarmos uma associação, mas a iniciativa foi descartada. Leigos podem se associar, bispos eméritos não devem se associar. Na última Assembleia da CNBB eu pedi que os bispos na visita ad limina apresentem ao papa e à Congregação para os bispos, o pedido para que o bispo emérito continue a pertencer à Conferência Episcopal, com poderes limitados. Somos uma Igreja carente de ministros e não é tempo de, missionariamente colocarmos de lado pessoas que podem colaborar. Há um encaminhamento para que teólogos aproveitem do bispo emérito e a própria Conferência Episcopal nomeou uma subcomissão para acompanhá-los. A subcomissão já lançou uma consulta a respeito da vida e do ministério do bispo emérito. Um dos pedidos foi que se realizem encontros. A comissão pediu também que cada regional da CNBB escolha um bispo referencial e marcamos um encontro com estes bispos em Aparecida, de 31 de agosto a 3 de setembro.
O senhor participou de duas Conferências do CELAM, Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007) e foi também delegado no Sínodo dos Bispos para a América (1997). Como entender a conversão pastoral e renovação missionária da Igreja?
Aparecida foi uma bênção onde nós acolhemos o Espírito Santo, para que sejamos livres em Cristo. Este sentido de liberdade tem que crescer na Igreja. Nós temos que criar espaços de diálogo na caridade. O enunciado da Conferência para que sejamos uma Igreja discípula missionária é realmente urgente porque precisamos de uma séria purificação. Colocar Jesus Cristo no centro nos leva ao Pai e nos abre à Missão. Eu sinto que a Igreja está sendo beijada pelo Espírito Santo, ela está passando de uma pastoral de conservação para uma pastoral autenticamente missionária. Este é o momento de convocação geral, de formação e de investir nos leigos e leigas, em um reconhecimento do batismo, mas é preciso que eles exerçam seu ministério e que sejam apoiados. Ser presbítero celibatário é um dom, é um carisma. Mas defendo também que nós não devemos continuar com comunidades de católicos abandonadas, que têm fome da Eucaristia. Fazer somente a comunhão espiritual não alimenta. Então, precisamos realmente rezar e refletir seriamente sobre a ordenação, para que, unidos ao bispo, aos padres celibatários, tenhamos também, homens provados na comunidade e na família, que possam ser ordenados presbíteros e diáconos agindo na comunidade eclesial. Eu acredito em uma Igreja explosivamente ministerial para que a paróquia realmente se converta numa rede articulada de comunidades, (CEBs) sem o que realmente nós não teremos a explosão missionária que devemos ter.
A última Assembleia da CNBB revisou as Diretrizes da Formação dos Presbíteros à luz de Aparecida. Há alguma novidade sobre o padre do futuro?
Nós estamos vivendo numa nova época de globalização e crise do capitalismo, uma nova época em que os meios de comunicação estão revolucionando o modo das pessoas tomarem contato com o mundo. As pastorais sociais, na década de 70 eram a voz de Deus e a voz do povo, em tempos de perseguição. Hoje parece que não há o que enfrentar, mas os problemas básicos da população continuam e nós temos uma dificuldade para nos adaptar ao novo contexto. Na Igreja é muito mais fácil se aburguesar do que se comprometer com a causa da justiça. É muito mais fácil participar numa reunião de culto sem compromisso, preocupado com edifícios que muitas vezes causa um consolo espiritual, do que realmente ir à luta pela causa da justiça. Não nos esqueçamos de que a Igreja será bem-aventurada na medida em que, a exemplo de Jesus, proclamar bem-aventurados os pobres de espírito. Nós somos discípulos de alguém que não morreu na cama, mas morreu crucificado e foi pego pelas autoridades religiosas, políticas, econômicas e sociais do seu tempo.
Diante da gritante desigualdade social, por que a fé cristã não tem força para forjar uma sociedade mais justa conforme o sonho de Deus?
A Igreja no Brasil nunca investiu seriamente numa catequese abrangendo a vida toda do cristão, ela é uma catequese sacramentalista. Na queda do regime de cristandade que estamos vivendo temos uma ignorância religiosa. Sobre a Iniciação Cristã, a Assembleia da CNBB voltou a considerar o catecumenato. Precisamos tomar algumas medidas sérias. Se investíssemos na catequese aquilo que investimos em templos e casas, já começaríamos a fazer uma revolução.
Como o senhor gostaria de ver a comunicação na Igreja?
Gostaria que a nossa Igreja acordasse para a presença nos meios de comunicação e valorizasse os nossos meios. Precisamos investir muito mais. "É tempo de investir não em torres de igreja, mas em torres de rádio e televisão", já me dizia um bispo tempos atrás, mas a gente ainda continua investindo em torre de igreja onde as corujas fazem seus ninhos. Eu acho que a CNBB tem que dar alguns passos neste sentido e nós podemos investir mais nos nossos meios.
Como o senhor vê a resistência tão grande, em se fazer cumprir o direito dos Povos Indígenas no Brasil?
A história do Brasil coincide com a história de genocídio dos índios, isto é uma vergonha. Há dois mil anos Jesus Cristo já dizia, que não é possível coexistir o Reino com o dinheiro enquanto objeto de exploração. É tempo de o Brasil criar vergonha e ser realmente uma nação pluricultural, de muitos povos. O governo precisa continuar firme. Parabéns à Raposa Serra do Sol. Medidas semelhantes devem ser adotadas em todos os cantos do Brasil. Nós temos uma dívida social imensa com índios e afrodescendentes, todo o trabalho de Igreja, do Cimi, da Pastoral Afro e de outras entidades a favor da dignidade e da preservação da cultura destes povos, tem que encontrar, na Igreja, uma voz profética. Alguns deputados, senadores e fazendeiros são muito atrasados, porque os direitos dos índios são anteriores.
O Brasil tem ainda outra dívida para com a população afrodescendente. O que pensa das ações afirmativas como cotas para negros nas universidades?
Jaime Carlos Patias, imc, mestre em comunicação e diretor da revista Missões.
Karla Maria, LMC, estudante de jornalismo e colaboradora da revista Missões.
Publicado na edição Nº06 - Julho/Agosto 2009 - Revista Missões.
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